"Todo Dia a Mesma Noite" repete o mesmo erro na esperança de que passe despercebido

É 2018, a Netflix lança o queridinho da opinião pública O Mecanismo , a série sobre um processo ainda em andamento a qual o produtor e diretor José Padilha se arrependeu de ter feito (Veja, maio de 2022 ), muito porque a série da Operação Lava Jato traz nosso querido ex-super-ministro-da-justiça e senador eleito Sérgio Moro (União-PR) representado pelo ator Otto Jr no papel de lado certo da história sem a preocupação de deixar o caralho do processo terminar antes de começar a retratar o que aconteceu, por exemplo.

Junto com a série, obviamente, muito se falou do quanto Padilha mexeu na história real para contar a história como espetáculo, desrepeitando pontos importantes em prol do lucro. Essa discussão tem voltado ainda maior nos últimos dois anos, em um momento do entretenimento que se vê no true-crime uma forma de desrespeito, como em Dahmer ao retratar com realismo o depoimento de Rita Isbell.

Se eu não soubesse mais, teria pensado que era eu. O cabelo dela era igual ao meu, ela usava as mesmas roupas. É por isso que parecia reviver tudo de novo. Isso trouxe de volta todas as emoções que eu estava sentindo naquela época. [...] Eles não me perguntaram nada. Eles apenas fizeram isso. [...] É triste que eles estejam simplesmente ganhando dinheiro com essa tragédia. Isso é apenas ganância.
Rita Isbell para o Insider

Diferente de Dahmer, há uma pequena diferença quando falamos de Todo Dia a Mesma Noite , série dirigida por Júlia Rezende que estreou na Netflix: alguns pais foram contatados e aprovaram a série, outros, não. A reportagem do GaúchaZH traz, inclusive, que a advogada Dr.ª Juliane Muller Korb acredita na viabilidade de uma ação de danos morais e sequelas médicas contra a Netflix pois houve pais que "voltaram para a terapia por causa da série". Por óbvio que seja, nem todas as famílias das vítimas foram contatadas pois a tragédia vitimou 242 falecidos e 636 feridos, e a maneira irresponsável com que a emissora estadunidense "homenageia" a década da tragédia é... contratando uma produtora carioca e um monte de atores do sudeste imitando o sotaque gaúcho para dar sua opinião sobre um processo que ainda não acabou, dando sua opinião sobre aquilo que nem a justiça gaúcha conseguiu chegar num consenso ainda.

A irresponsabilidade também entra na contradição do próprio discurso da série, que mostra a luta de familiares pelo júri popular e, ao mesmo tempo, mostra na prática o quanto é fácil contaminar um júri, quando quem assiste a série comenta em tom uníssono sobre acontecimentos reais retratados de um ponto de vista específico. Fazendo um paralelo com O Mecanismo, quem tem que ser imparcial é juiz e a série demonstra que sabe muito bem do poder e direito de expressão que tem e exerce ao antagonizar réus que não estão condenados em nome da espetacularização da tragédia.

A série termina pintando os réus como culpados como se os dez anos sem resposta final da justiça fossem devido a uma "cultura da impunidade" e não devido à complexidade da tragédia e de seu julgamento, que até hoje não colocou a coisa pública no banco de réus. Parabéns por mostrar, mais uma vez, que sabe fazer um trabalho melhor que advogados, promotores, juízes e toda a justiça brasileira, Netflix. Parabéns por resumir dez anos em cinco episódios enviezados.

Mais uma vez, vemos como é fácil dar pitaco na justiça fantasiado de homenagem e memorial.

Tri bonito.